terça-feira, 23 de junho de 2015

Meu Galo Chico


Óleo de Catarina Fontan




















     Acordei preguiçosa! A casa estava vazia de frutas e verduras, o corpo ensoado, a alma infensa...
     Quase perco o horário da feirinha! Comprei aipo, couve, belas cebolas.... Algumas barraquinhas, já desarmadas,  despediam-se com a chegada da chuva fina. Como gosto da chuva, dou-lhe a face e sinto que ela me lava a alma por cortesia.

     Percebi a aflição do jovem alagoano que toda semana levava seus pintinhos para vender na feirinha. Eu não aprovo isso e restava-me rezar pelos pintinhos que dalí saíam com vida. O rapaz estava nervoso, gritava com o pintinho na mão, porque ele sobrara entre tantos e, conciliado à chuva, parecia atrapalhar seus planos. Aproximei-me do alagoano e ofereci ajuda, mas ele queria mesmo era vender o pintinho, porque a caixa de papelão se desfizera com a chuva. Negou quando lhe perguntei se queria doar o pintinho e então fui contra os meus princípios para salvar o indefeso bichinho da irritação daquele comerciante. Após pagar pela ave tão criança, determinei que esqueceria aquele momento e me envergonharia de relatar aos meus amigos o que fizera. Coloquei o pintinho dentro do sutiã para protegê-lo da chuva e fomos com destino à nossa casa.

      Precisei ter uma séria conversa com meus outros companheiros, a gatinha Virgínia, o cãozinho Banga e a  arara Sereia. Afinal, todos precisariam respeitar o infante Chiquinho, assim passei a chamá-lo.

     A primeira semana foi muito difícil. Chiquinho tornou-se alvo de brincadeiras desajeitadas de Banga e Virgínia, mas acabaram se entendendo. Ele dormia comigo na cama e precisei me acostumar a adormecer com a lâmpada do abajur acesa, pois piava muito como se me confessasse o seu medo de escuro. Virgínia ficava com insônia pela lâmpada acesa, mas Chiquinho sonhava...

    Viciou-se no meu ombro e viciei-me em andar todo o tempo pela casa com ele ali. Joelma, boa vizinha e amiga, confeccionou-me uma veste plástica, evitando que eu trocasse de roupa cada vez que Chiquinho me sujasse ao atender suas necessidades fisiológicas. Cheguei a pensar em fraldas, mas como fazer fraldas para um pinto? Aos poucos, Chiquinho entendeu que precisava descer do meu ombro para viver normalmente como um galo, mas nunca abriu mão de dormir na cama.
    Um dia, chamou-me para uma conversa adulta, fazendo-me ver que já havia se tornado um galo e não ficaria bem ser chamado de Chiquinho. Emocionava-me ver aquele galo tão grande, cobrando aconchegos da gata Virgínia. Ela não podia se deitar encolhida, porque ele queria se abaixar sobre ela e a bicava com carinho até que ela cedesse.

    A associação dos moradores da rua visitou-me com um abaixo-assinado para que me desfizesse do galo Chico, pois ele cantava insistentemente das 05:00 às 07:00 horas. Como eu poderia dizer a um galo feliz que deixasse de cantar? Certamente me repondería que preferiria morrer. Mas que diabo me fez acreditar que poderia residir em Brasília, cercada de mansões, de corações "tubarescos", com um galo tenor?
   A princípio, deixava fechada a janela do quarto, evitando que o meu Chico fosse cantar no quintal, mas ele cantava tão alto que ultrapassava as paredes. No auge do meu desespero por não achar uma solução, Chico surpreendeu-me roçando suas penas em minhas lágrimas e, enquanto lhe dizia o quanto era dócil, pensei ter achado a solução. Visitei cada um dos moradores da rua com meu Chico no colo; precisava sensibilizar aquelas pessoas com a ternura que ele tinha para oferecer. Felizmente, todos me deixaram entrar, falar e mostrar as gracinhas que meu galo era capaz de fazer. As crianças se apaixonaram, os adultos o acariciaram, os frios se deixaram conquistar e Dona Aurora, uma idosinha surda, disse que ele nunca a incomodara.  Desde então, Chico passou a ser venerado.

    Quando viajei com a amiga Olga para a Europa, Joelma escreveu-me dizendo que meu Chico estava doente: não cantava, não comia, não brincava... No mesmo dia, comprei passagem e reforcei de amor aquele abraço que marcava uma das mais belas etapas da minha vida. Já no portão, enquanto retirava as malas do táxi, Chico voou em direção ao meu ombro, onde já não cabia; espremendo-se, aninhou-se e cantou às 17:00 horas, saudando a minha chegada. Mal sabia ele, dentro da mala havia milho italiano para o meu dócil tenor...

    Num domingo, o jardineiro Joaquim pediu-me o Chico emprestado para casar com sua galinha Diva, que residia em Sobradinho. Enquanto conversávamos, Chico me olhava inquieto; parecia pedir-me que não negasse... Sensibilizou-me, convenceu-me...  Fui levar meu galo a Sobradinho naquele mesmo dia e pude sentir sua alegria, enamorando-se de Diva. A jovem galinha mostrava-se receptiva e cedeu a ele de imediato. Chico não foi animalesco: rodeou, cortejou e, como havia aprendido lições de amor, foi delicado ao desvirginar Diva. Joaquim ficou impressionado com a educação de Chico, que se comportara como um cavalheiro; não abandonou Diva, ali permaneceu por um bom tempo como se estivesse lhe falando do seu amor à primeira vista. Quando fomos embora, percebi que meu galo estava mesmo apaixonado; entrou novamente em depressão e, na tentativa de alegrá-lo, passamos a segunda-feira pintando o seu retrato. Entre tintas e pincéis, nosso diálogo era uma retrospectiva de verdadeiros sentimentos. Percebi que Chico não melhorava, dizia-me com os olhos que preferiria morrer a optar por mim ou por Diva.

     Na terça-feira, acordei com o vento batendo na janela. Chovia muito. Virgínia aquecia-se entre meus pés, mas meu amado Chico não havia cantado. Estava adormecido para sempre ao meu lado.

Catarina Fontan

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